domingo, 26 de junho de 2011

Crônica premiada




A crônica abaixo, do Acadêmico Vasco Pereira de Oliveira, ficou em 2o lugar no Prêmio Literário da 11a Feira do Livro de Ribeirão Preto/SP. Parabéns ao nobre e talentoso colega.

VER E ENXERGAR

P.,Covas


Estava o mestre descansando sob um salgueiro (onde convém aos mestres descansar), quando foi a ele um discípulo faminto.
“Mestre, o que fazes?”
“Desfruto da minha paz interior.”
“Mas, mestre, estou com fome, como pode um faminto ter paz interior?”
“Se me perguntas é porque nunca alcançaste tua paz interior. Devo dizer-te que o caminho é longo, sacia primeiro tua fome animal. Depois de muito treinamento poderás desfrutar de algum alimento para o espírito. Há uma escala de necessidades que deve ser seguida. Primeiro deverás comer, te vestir, te abrigar, para depois pretenderes voos mais altos. Ao faminto de pão é pregar no deserto. Primeiro te libertes da fome.”
O discípulo saiu à cata de alimento para o corpo. Não foi difícil arranjar algumas sobras. Uma côdea de pão, um pouco de leite e uma fruta. Passadas algumas horas, voltou àquela elevação (onde convém aos mestres pregar), e encontrou-o falando a um pequeno grupo. O discípulo, com o corpo saciado pelo alimento, pôde se concentrar no que o mestre dizia:
“Pensem nas sutis diferenças das coisas do mundo. Nós sorrimos utilizando os músculos da face, suas inúmeras terminações nervosas, a boca, os lábios e suas formas, mas como explicar o encanto do sorriso e seus mil significados?
Sintam a perfeição do olho, seus líquidos, delicados sensores e componentes óticos precisos, aperfeiçoados em milhares de anos de evolução; mas como explicar a magia do olhar e a natureza dos olhares?
Nossos músculos, ossos, pele, cartilagens dos braços e antebraços, também não explicam os segredos do abraço.
O tecido do cérebro e seus intrincados caminhos de impulsos são insuficientes para explicar as magias da mente e todo o seu poder criador.
Assim como os tijolos de uma casa, sua argamassa e pedras, não revelam as teias de relacionamentos que constroem um lar.

2

E as palavras, disponíveis a todos, por si só não se juntam para formar uma obra literária.
O conhecimento, o acúmulo de dados, a experiência vivida de nada valem se isso tudo não for transformado em sabedoria e utilizado para o bem comum.
A perfeição das mãos, seus inúmeros sensores e terminais nervosos não explicam os encantos do afago.”
O mestre continuou pregando aos discípulos e os ensinando a observar as coisas. Certamente não utilizou palavras como “delicados sensores”, “componentes óticos”, “cartilagens”, “terminais nervosos”, que àquela época não estavam disponíveis em língua nenhuma. O perspicaz leitor e a sagaz leitora deverão imaginar outros termos que, no fundo daqueles tempos, significavam as mesmas coisas.
O discípulo começou a refletir e entender as sutis diferenças entre o alimento do corpo e do espírito. Entendeu que as coisas da vida somente têm valor se delas conseguirmos retirar seu mel. Compreendeu a diferença entre ver e enxergar. Enxergar é ver através da cotidiana opacidade das coisas. Não enxergar, inferiu, é como ter a alma cega. De nada adianta olhos de ver. Os animais ditos inferiores também veem. Veem o pôr do sol, o orvalho da noite, a mágica presença das estrelas, porém não enxergam a beleza, não sentem o prazer estético.
O pior cego não é aquele que não vê, mas aquele que vê e não enxerga.

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